Começou como um sonho…
PARTE 1 – Sebastião se une a Sebastiana: um caso de amor
Sebastião não é uma pessoa, não. É uma avenida – a avenida São Sebastião, na Urca, Rio de Janeiro, que este fim de semana na prática esteve próxima de Sebastiana, agricultora do assentamento rural de Santo Inácio, em Trajano de Moraes, uma pequena cidade de alguns poucos milhares de habitantes no norte fluminense, a 4 horas do Rio de Janeiro. O assentamento reúne aproximadamente 54 famílias, cada uma com um lote de terra, no qual plantam buscando um sustento, evitando o êxodo para a cidade.
Como Sebastião se uniu a Sebastiana? Porque Beth, integrante de uma pesquisa sobre assentamentos rurais no estado do Rio de Janeiro, tem ido sistematicamente a Santo Inácio. Ao conviver mais de perto com a comunidade, vínculos são estabelecidos com os que ali vivem, plantam, lutam por sua sobrevivência com dignidade e dedicação. Em especial Sebastiana a tocou pela coragem, perseverança e amor à terra. Num lote pequeno – o menor do assentamento – cultiva aipim, tangerina, laranja campista, batata doce, palmito, etc., tudo sem agrotóxico, com a maior garra e alegria.
O que logo ficou gritante na sua realidade era a dificuldade de escoamento da produção. Não há transporte estruturado para o assentamento. Sebastiana trabalha muitas horas na lavoura – com gosto – cuida de seus netos, da casa, de seu marido, – luta com muita dificuldade, e na hora de colher os frutos fica difícil. Isto acaba acarretando doenças, fruto da tensão com a sobrevivência.
Beth mora no Rio, na avenida São Sebastião, a mais antiga rua da cidade do Rio de Janeiro, e é amiga de Miriam, que também mora nesta rua. Ambas eram associadas da Coonatura, e acreditam muito na importância do alimento sem agrotóxicos. Miriam é educadora ambiental, e fica pensando de como a consciência e as ações ambientais podem ser aumentadas, numa sociedade do descartável e da indiferença.
Algumas idéias para ambas são claras: a cidade e o campo precisam se aproximar. O morador urbano tem que entender melhor a peleja e a importância das pessoas que estão no campo, viabilizando nossa nutrição. A alimentação é a base de nossas vidas, define imperceptivelmente quem somos. Cada vez mais a alimentação é colocada distante da terra, da água, do sol, da mão humana cuidando, roçando, plantando, semeando. O alimento tem sido cada vez mais apresentado como algo descartável, artificial, industrializado, desvitalizado.
O contato com o campo ajuda o consumidor urbano a entender melhor o ciclo do alimento. Todos os dias alimentos são consumidos. Esta microdecisão é política. Em relação a si, a grupos próximos e distantes, e finalmente, em relação ao planeta terra. Apoiar camponeses que se mantêm fiéis ao campo, que estão plantando sem agrotóxicos é estar cuidando da terra, das pessoas e de si mesmo. Mas o consumidor chegar a esta conclusão não é fácil, envolve um processo psicossocial de conscientização, e de vivências que o façam perceber o que está em jogo. Tudo convida a que corramos ao megasupermercado e liquidemos o assunto da maneira mais rápida e asséptica, dentro de um cotidiano frenético, no qual nos vemos como massa, na qual o indivíduo não vai fazer diferença.
Beth e Miriam foram pensando juntas: porque não ir até Trajano no feriado, passear, visitar a Sebastiana, levar sua colheita de tangerinas que está em final de safra e experimentar nossa rua como compradora e consumidora? Quem sabe a médio prazo poderemos organizar uma pequena rede de rua, que poderá receber alimentos sem agrotóxicos?
As coisas foram acontecendo sem planejamento.Partimos com nossos filhos, num lindo dia de junho, com muita disposição. Chegando em Trajano, ficamos encantados com a beleza da paisagem, a graça da cidadezinha, a conversa com Sebastiana e companheiros, o assentamento. Foi uma visita maravilhosa, apesar de rápida: fomos num dia e voltamos no outro. O mais importante foi ver o contentamento de Sebastiana com nosso gesto.
Quando chegamos de volta, telefonamos para pessoas da rua, que já conhecíamos, porque Miriam já é moradora antiga. As pessoas se interessaram, e rapidamente as tangerinas, aipim e palmito foram sendo absorvidos. A ideia de uma rede alimentar para produtos sem agrotóxicos foi bem recebida. Neste primeiro momento Mônica, Terezinha, Jaime, Ana, Graça, Teresa, Fabio, Lélia e outros foram concretamente se unindo a Sebastiana. A avenida São Sebastião se uniu a Sebastiana.
Quem sabe este não pode ser um caminho de educação ambiental? Um canto organizado da cidade recebendo e arcando com o transporte, sem intermediários, do que o campo tem de melhor para oferecer. Este tipo de proposta poderia ser considerado um ecoturismo solidário, mais uma forma de preservar a Mata Atlântica, prevenir o êxodo rural, levando informações para a população rural que a ajudarão na sua caminhada. Está em jogo uma troca – e um gesto de amor.
PARTE 2 – A transformação do sonho em realidade, através de muita luta e solidariedade
A partir daí, a Rede Ecológica se diferencia da sua precursora, a Coonatura, que acabou entrando numa lógica comercial, apesar de se organizar como associação.
A Rede, desde sua criação até hoje, se define como um grupo de compras coletivas de alimentos agroecológicos, proposta que integra a economia solidária. Neste modo de funcionamento, o lucro não faz parte dos objetivos. As compras coletivas supõem, no caso da Rede Ecológica, a autogestão e um sistema de voluntariado na maioria de suas ações – e um voluntariado militante. As compras de alimentos de alta qualidade, sem veneno, rústicas, preferencialmente de alimentos locais e tradicionais são possíveis pela construção coletiva. E a contrapartida, da parte dos associados, é a contribuição voluntária. Uma postura que crescentemente tem sido aceita pelas pessoas como parte necessária de sua convivência na Rede.
Compramos produtos frescos e, uma vez ao mês, produtos que chamamos de secos, que incluem grãos os mais diversos, farinhas, produtos lácteos, sucos, produtos de limpeza etc. A compra de secos se iniciou em 2002 e foi se diversificando cada vez mais, o que tornou a ida ao supermercado desnecessária, a não ser para pouquíssimos itens.
Mas, este gesto não seria possível, se não tivéssemos na outra ponta nossas/os produtoras/es. Na escolha desses parceiros, privilegiamos os que estão mais vulneráveis às condições de seu entorno, e que são ao mesmo tempo os mais fortes e coerentes em relação à proposta. O MST, por exemplo, mais e mais se tornou parceiro de caminhada, que tem em comum com a Rede a luta pela agroecologia, pela popularização e acesso dos alimentos, pela reforma agrária. Criou-se uma relação de gratidão mútua, de fidelidade, de solidariedade. Ao longo destes 20 anos de existência da Rede, acabamos tendo produtores dos mais diversos perfis, mas sempre dando preferência para agricultores familiares. Atualmente também estão entre nós produtores neorurais, que acabam contribuindo com produtos diferentes, mais difíceis de se conseguir. A consequência é uma grande riqueza e biodiversidade de abastecimento, com vários produtos que não se consegue nos espaços convencionais de compra.
O movimento solidário na Rede Ecológica se expressa da forma mais forte exatamente em relação a nossos produtores, pelos quais temos um carinho especial, por percebermos que são eles, fundamentalmente, que viabilizam esta nossa caminhada. Sem eles, nada disso teria sido possível. E nós, através da compra, vamos possibilitando sustentabilidade no campo, além de prestígio e empoderamento.
Deste modo, a cadeia produção-consumo, sob nossa direção, ganha novo status: de alienada – em que quem consome não tem ideia do que se passa com os que produzem – para consciente. Saímos da dependência no acesso ao alimento e consequentemente dos supermercados. Um pequeno grande gesto que nos livra, em grande parte, do sistema capitalista em uma dimensão de nossa vida: o alimento como valor, a soberania alimentar como algo praticável, uma real parceria entre produtores e consumidores. É uma troca. Não queremos ter lucro. Nosso lucro é este formato tão enriquecedor!
Essa lógica de atuação faz com que não queiramos nos formalizar, não nos tornando uma cooperativa ou associação, apesar de sermos, desde o início, um coletivo. Isso, porém, não impede que nos movimentemos para que todas nossas entradas e gastos estejam organizados.
Em realidade, esse equilíbrio nos possibilitou começar a fazer empréstimos para fortalecer os meios de trabalho de nossos motoristas e produtores, o que foi para eles um poderoso auxílio. Importante deixar claro que não temos inadimplências, um resultado maravilhoso de como a economia solidária é eficaz.
Estamos operacionalizando uma nova proposta mais ousada ainda, típica da economia solidária: a de criação de um fundo de crédito solidário, que possibilite empréstimos maiores com devolução com juros de caderneta de poupança, com prazos a serem combinados.
Outro ponto importante é que não quisemos, desde o início, crescer além de algo ao redor de 200 a 250 famílias. A ideia é que nos espalhássemos por zonas da cidade, até o outro lado da baía – Niterói, e fôssemos para a baixada fluminense, buscando populações sem acesso a alimentos agroecológicos. Nesses núcleos e entre eles, acontece uma interação solidária. Isto vai trazendo uma dimensão humana, de proximidade, de compartilhamento que torna a Rede amada por muitos. Ela fornece múltiplos alimentos, materiais e imateriais.
Para que este movimento cresça como prática social, acreditamos que nossas propostas possam ser fonte de inspiração ou subsídio para outros. Ao rompermos com a cadeia hegemônica de produção-consumo, estamos nos posicionando de um modo muito mais amplo, mostrando que na prática podemos viver de outro modo, concretizar um bem viver. Um bem viver que alcance as duas pontas: nós, consumidores, e produtore(s).
E por último, mas não menos importante: nosso nome Rede Ecológica não nega nossa preocupação com nosso planeta, com a natureza, e com a sobrevivência dos humanos nele.
Daí desde sempre uma preocupação com os 3 Rs, que parecem um detalhe, mas que são fundamentais: o primeiro r de redução de consumo, automaticamente vem com nossa forma de comprar. O reaproveitamento é algo que prezamos muito, tentando prolongar a vida útil dos objetos e nos colocando assim contra a obsolescência planejada, cada vez mais utilizada pelo sistema capitalista. O que fizemos neste sentido foi criar um caderno ecológico, feito a partir de reaproveitamento de folhas, capas etc., que tem um valor educativo simbólico. Organizamos uma comissão que se volta para monitorar nossas embalagens, com o plástico sendo corajosamente combatido. Assim, o saco plástico e o isopor estão banidos de nossas compras. E esta comissão está numa campanha rumo ao plástico zero, que ainda não se tornou realidade, mas está em processo. As embalagens de vidro são retornadas em um circuito virtuoso para serem reutilizadas pelos produtores.
Finalmente, também nesse sentido, uma comissão recém-criada com a finalidade de uma ação chamada de Repasse com o Coração busca fazer com que o processo normalmente feito como descarte de objetos que não são mais de interesse torne-se algo que possa ser carinhosa e cuidadosamente repassado aos que precisam, e vão fazer bom uso. É a solidariedade com nossos irmãos e irmãs e com o planeta.
PARTE 3 – Ampliando a Rede de apoio frente ao desgoverno e à pandemia
A Rede Ecológica se caracterizou desde o início por ser um grupo discreto, que foi desenvolvendo seus trabalhos sem chamar muita atenção. Foi pouco interessada em divulgar seu trabalho na mídia. E fica muito claro que ter-se tornado uma referência em termos de grupo de consumo consciente resultou muito de suas ações dentro do movimento social e do boca a boca, bem como de sua história estável e bem sucedida em várias vertentes, para além das compras coletivas.
Dentro do movimento social, pensando no reforço a políticas públicas, a Rede Ecológica dedicou-se a ser presença constante, desde 2011, no Conselho de Segurança Alimentar do município do Rio de Janeiro, tendo tido ali desde então um papel ativo.
Sua relação com o MST tornou-se mais forte nestes últimos anos, especialmente desde a eleição bolsonarista. Assim, em 2019, a Rede Ecológica movimentou-se para possibilitar a compra de um caminhão para um coletivo de comercialização que integra 3 assentamentos do sul fluminense, o Coletivo Alaíde Reis. A Rede correu atrás, através de uma campanha de doação e empréstimo, e conseguiu viabilizar o caminhão, o que facilitou a logística de comercialização desses assentamentos.
Ainda neste mesmo ano, definiu-se por realizar mensalmente uma visita ao assentamento Terra Prometida, que vivia momentos muito difíceis, ameaçado pela exploração de areais em suas terras, e pela ação de milícias, desrespeitando ser ali uma área de preservação. As visitas sempre foram consideradas uma forma de divulgação e visibilização muito importante para o movimento. Neste ano de 2019, cada núcleo assumiu a organização de uma visita, que possibilitou muitas trocas, tendo estado presentes pessoas de fora da Rede que desconheciam os assentamentos. A roda de conversa que se estruturava, trazendo as questões do assentamento e do movimento; o almoço feito com os produtos do assentamento, com geração de renda, foram contribuições relevantes, que aumentaram a consciência social e política dos visitantes.
No ano de 2020 fomos surpreendida(o)s pela pandemia. A primeira grande decisão foi: manteríamos nossa entrega de frescos e secos? O medo era grande, o desconhecimento também. E foi muito impressionante ver, como depois de conversas e reflexões, houve a decisão pela manutenção das entregas. Algo fundamental para nossos produtores, que já não podiam contar com suas feiras e seus outros canais, vivendo um momento de crise.
Decidimos ir além: a partir da percepção do desespero das ruas, em que aumentava a cada dia a população sem abrigo, iniciou-se um movimento de apoio, propondo a compra de produtos de nossos produtores para completar as refeições que vinham sendo preparadas pelo coletivo Rua Solidária, para a população de rua.
Rapidamente houve necessidade de redefinição por novos territórios e também formatos: a compra de alguns de nossos produtores viabilizaria cestas para famílias em insegurança alimentar, atendendo às duas pontas. De um lado aumentando o escoamento de nossos produtores e, de outro, introduzindo comida de verdade para espaços que não têm tido acesso a ela. Foi impressionante perceber o encantamento com os alimentos agroecológicos que ali chegavam quinzenalmente e que remetiam aos tempos dos avós, da roça. Dessa forma foi se construindo em realidade a possibilidade de um canal direto entre produtores e estes moradores, ampliando o acesso de alimentos de qualidade ao povo. Este tinha sempre sido um desejo nosso, para sair de nossa bolha, algo difícil de realizar. A campanha abriu o caminho para avançar nesta direção, conforme se pode ver pelo relato que se segue. É um balanço do ano de 2020, um bom retrato do que foi feito.
Além da entrega de cestas, tínhamos ambições maiores: não apenas refamiliarizar as pessoas com esses alimentos saudáveis, mas também propiciar oportunidades para que pudesse ser construído o acesso a estes alimentos, através do seu plantio por estas comunidades. Um segundo aspecto era o de propiciar geração de renda, tanto através do plantio e venda de produtos, como através do preparo destes alimentos, reforçando uma culinária de qualidade. Nesse sentido, continuamos estimulando hortas e cozinhas comunitárias, em que o coletivo perceba sua força, e sua possibilidade de ter autonomia, construindo novos caminhos mais permanentes de reforço à agricultura urbana.
Finalmente foi interessante perceber que a entrega de cestas em alguns locais rapidamente se transformou em uma feirinha agroecológica e solidária de produtos, no caso doados. Pode ser um embrião de uma feirinha, consolidando a escolha por consumo de uma alimentação de qualidade, produzida em local o mais próximo possível do consumo. Este formato exatamente pode ser uma forma de posteriormente facilitar a continuidade do canal criado entre produtores e consumidores.
Importante destacar que, como a maioria dos produtores da campanha são integrantes do MST, do movimento de reforma agrária, sempre que há um contato direto com os consumidores, é trabalhada a significação deste alimento na cadeia da grande luta que o cerca e que está em curso.
A organização da feirinha agroecológica e solidária nos remete aos grupos de consumo. Tendo sido nosso ponto de partida, acreditamos ser o formato necessário para manter vivas e atuantes feirinhas deste tipo no póspandemia, indo muito além do próprio alimento e assim se organizando micro e macropoliticamente.
Não poderíamos deixar de comentar o grande movimento solidário de apoio à nossa campanha, que já nos garante a continuidade de trabalhos até o final do ano de 2021. O apoio de nossos cestantes, de amigos e familiares que se transformam em amiga(o)s da Rede, e em grupos de fora do país, que tem também apoiado consistentemente a partir da França (através da ong Amar), Suiça e Alemanha. Esses vínculos são promissores, no sentido da continuidade destes trabalhos empoderadores que estamos vendo acontecer.