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Texto para reflexão: Democracia cognitiva e mudança do sistema alimentar brasileiro de Juliana Dias e Monica Chiffoleau imperdivel!

Monica Chiffoleau mandou novo texto de seu blog:

Nas últimas horas do dia 25 fevereiro desse ano uma notícia era comemorada pelos ambientalistas com alívio. A data era o prazo final para a consulta pública referente à comercialização do agrotóxico Carbofurano, realizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão responsável pela regulamentação e fiscalização de alimentos e medicamentos. Durante o decorrer dessa quinta-feira de 2016 a votação online indicava que 66% das pessoas eram a favor da continuidade desse pesticida no mercado, enquanto apenas 31% pediam o banimento.

Quando o jogo parecia estar perdido, a situação deu uma reviravolta, depois que a apresentadora de TV Bela Gil (Bela Cozinha/GNT) pediu para seus seguidores no Facebookvotarem para banir o produto. Meia hora depois da publicação do post de Bela na rede social, o percentual de votos a favor do banimento subiu de 31% para mais de mais de 50%. Ao final da votação chegou a 69%, com apenas 29% a favor do agrotóxico. Antes dessa ação da apresentadora, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, que no dia 07 de abril completa 5 anos, publicou matéria convocando seus parceiros para participarem da votação. O Carbofuran é um dos pesticidas mais nocivos utilizados no Brasil, classificado como altamente tóxico pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela agência de risco dos Estados Unidos da América (EUA). No Brasil, é utilizado em diversas hortaliças, frutas e grãos, tendo sido proibido na Europa e na Califórnia, nos EUA. Diversos agrotóxicos ainda são permitidos no país, mesmo tendo sido banido em outros lugares.


No mesmo período, outros dois agrotóxicos também estavam em consulta com prazo para término em 07 de março. São eles, o herbicida Lactofem, proibido na União Europeia; e o fungicida Tiram, retirado voluntariamente do mercado dos EUA. Ambos tiveram a maior percentagem de votos a favor da banimento, com 57,62% e 84,92% respectivamente, com cerca de 2.375 colaborações. As notas técnicas divulgadas pela Anvisa recomendavam a proibição do Carbofurano, mas determinavam a manutenção do Tiram e Lactofem.

Ativismo pela alimentação saudável
A vitória da votação do Carbofuran teve mérito de Bela Gil? Sem dúvidas contribuiu de forma significativa
12938319_614721542015814_5518680955968118257_nMeme postado por Bela Gil em sua página no Facebook (reprodução)

 


para o resultado positivo. Adepta da alimentação natural e livre de agrotóxico, Bela se define como como ativista da alimentação saudável para a população. Sua atuação vai além do programa culinário no canal a cabo. Entre suas participações em eventos, destacamos a presença na V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, em novembro de 2015. Esta conferência acontece cada quatro anos, onde são discutidas as políticas públicas referentes ao Direito Humano a Alimentação Adequada (DHAA).
Com o lema “Comida de Verdade no Campo e na Cidade: por direitos e soberania alimentar”, a o encontro priorizou valorizar as dimensões socioculturais da segurança alimentar e nutricional para aproximar a produção e o consumo de alimentos; as pontes entre o urbano e o rural; a agrobiodiversidade, os alimentos in natura e regionais, o respeito à ancestralidade negra e indígena, a africanidade e as tradições de todos os povos e comunidades tradicionais; e o resgate das identidades, memórias e culturas alimentares próprias da população brasileira.
A realização desse lema depende de muitos atores, que ao se articularem, criam um corpo combativo, capaz de enfrentar o sistema alimentar hegemônico, no qual a maior parte de produtos alimentares provém das 10 maiores empresas alimentícias – Associated British Foods (ABF), Coca-Cola, Danone, General Mills, Kellogg, Mars, Mondelez International (antes Kraft Foods), Nestlé, PepsiCo e Unilever. Estas corporações geram receitas de mais de US$ 1,1 bilhão de dólares por dia, com o poder que isto lhes garante. A Ong espanhola Oxfam publicou o estudo Por trás da marca, em que esmiuça esse cenário do sistema alimentar global.
Qual o papel politizado dos fãs e outros participantes?
A reviravolta da consulta pública da Anvisa é um bom exemplo. Demostra a mobilização para compor e fortalecer um novo corpo em que é possível lutar pela criação de um sistema alimentar sustentável, saudável e justo. São líderes de opinião, influenciadores digitais, agricultores, consumidores, cozinheiros, e todos que acreditam nessa mudança nos modos de produzir alimentos.
Observamos novos afetos e agenciamentos. Cada cidadão, como um órgão parcial desse novo corpo combativo, entende a importância de exercer cidadania para comer comida de verdade. Encontramos pessoas que compreendem a importância da participação na vida da cidade, no país e na democracia com a consciência de que não basta o caráter democrático das instituições. A participação não efetiva leva a democracia à agonia. Edgar Morin, socioantropólogo francês, propõe uma democracia cognitiva, na qual os cidadãos não estariam mais condenados à ignorância dos problemas vitais, e participando da construção de seus mundos de vida e dos futuros possíveis.
Excluídos e desterritorializados: reterritorialização
De acordo com dados de 2011 da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), 59% das compras dos brasileiros são realizadas em supermercados. No sistema alimentar moderno, os varejistas representam a terceira etapa, que segundo o jornalista norte-americano Paul Roberts, a concorrência entre os supermercados, ou hipermercados, espreme ao máximo os lucros da cadeia produtiva para se manter no topo da preferência de seu cliente. Este cliente, por sua vez, sinaliza Roberts, parece também ter sido moldado geneticamente, culturalmente e socialmente para absorver mais calorias em nome da conveniência e da falta de tempo que o próprio sistema o enreda.
Dentro da estética mercadológica, ditada pela economia alimentar, o setor de varejo apresenta uma “grande diversidade” de produtos alimentares. Tudo parece impecável e limpo, seguindo estritas normas sanitárias. Neste ambiente, não encontraremos agricultores familiares e, dificilmente, seus produtos. Não encontraremos informação sobre os agrotóxicos, e possivelmente, em pouco, tempo também não saberemos se os produtos são transgênicos. O supermercado aparenta ser o paraíso da “liberdade de escolha” para alimentar a população.
Esse cenário paradisíaco, organizado, iluminado e bem refrigerado, é ilusório. Realmente existe quantidade, falsamente entendida como variedade de tipos. Esses estabelecimentos oferecem produtos alimentares processados e ultraprocessados, baseados no princípio da padronização, embalados numa pseudo-variedade de “coisas aparentemente comestíveis”, produzidas com monocultura de milho e soja, contento alto teores de sal, gordura e açúcar. Apesar da seção de hortifrutigranjeiros, com gôndolas destinados a alimentos orgânicos, os agricultores familiares – que não obedecem a monocultura como modelo de produção – foram expulsos desse território.
Entendamos bem: o supermercado é o resultado final da desarticulação e desterritorialização de um circuito alimentar local. Sem mais escolha, ou por opção de vida, estes agricultores resistiram devido aos mercados de proximidade, a economia solidária, uma diversidade de técnicas agroecológicas, permitindo conservar um saber ancestral, livre e aberto. Estabeleceram redes e fluxos descodificados, no qual o fluxo do amor, da partilha e da solidariedade estão sempre presentes. Essa realidade, onde o supermercado prevalece, tem contribuído significativamente para que as nossas cidades sejam consideradas ambientes obesogênicos.
Ambientes obesogênicos
Os ambientes obesogênicos são aqueles que seduzem e induzem, por vários meios, a adoção de comportamentos não saudáveis. Algumas publicações relevantes sobre este tema, em particular da World Health Organizativo (WHO), a Agência da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e o World Cancer Research Fund, concordam que os fatores mais importantes que promovem o aumento de peso e a obesidade, assim como as doenças crônicas não transmissíveis são: a) o consumo elevado de produtos de baixo valor nutricional e alto conteúdo de sal, açúcar e gordura; b) consumo habitual de bebidas açucaradas; c) atividade física insuficiente.
Todos estes fatores são parte do ambiente obesogênico, que tem criado uma nova estética, a do excesso de peso e de uma profusão de males. As evidencias dos riscos à saúde, causados por este estilo de vida, tem propiciado a criação de associações, iniciativas, ONG´s que, junto com programas institucionais trabalhando em rede, como um movimento de contracultura. No campo das políticas públicas, destaca-se o Marco Referencial para Educação Alimentar e Nutricional (EAN). O documento aponta que a comunicação é fundamental e influência de maneira decisiva os resultados para promoção da alimentação adequada e saudável.
A necessidade, inconsciente ou consciente, de reforma de vida leva a privilegiar as qualidades, a retomar ou a re-criar um senso estético, na relação com a natureza, com o corpo, e a rever as nossas relações uns com os outros, entrando em comunidades sem perder nossa autonomia. Aí podemos encontrar alguns dos fãs da Bela Gil, cidadãos, consumidores politizados, apostando por uma nova estética de reterritorialização e construção social de mercados, compreendendo pautas políticas importantes como a reforma agrária, a qual tem sido citada pela apresentadora como o começo para o funcionamento da produção local.
As diversas formas da aspiração a viver “de outra maneira” espalham-se agora pelo mundo inteiro. Há mil esboços de reforma de vida, de aspiração a viver bem; escapar do mal-estar produzido pela civilização do bem-estar material; e praticar o convívio. Com uma visão complexa essas reformas incluem mudança nos hábitos alimentares, mas esses esboços ainda não se encontram articulados. No entanto, seu potencial é enorme. A potência que a multidão consegue quando se articula pode ser verificada na situação ocorrida com consulta pública sobre o cabofurano. Bastou 30 minutos para a votação ser revertida em favor do banimento desse agrotóxico.
Um novo triunfo dessa multidão conectada foi vivenciado nesse mês de março com a consulta pública a respeito da mudança do termo agrotóxico por produtos fitossanitário(Projeto de Lei 680/2015), de autoria do senador Álvaro Dias, filiado ao Partido Verde (PV), do Paraná (link das duas matérias publicadas). Observamos que a consulta disponível na internet avançou em números contrários à mudança, saltando de 165 na terça-feira, dia 29, para 2770 na quinta-feira, dia 30. O anúncio do arquivamento do projeto foi feito no mesmo dia, na Assembleia Legislativa do Paraná, pelo deputado estadual Rasca Rodrigues.
Transgênicos: precisando de uma multidão
Desde 2008 tramita no congresso nacional o projeto de Lei (4.148), de autoria do deputado Luiz Carlos Heinze (PP/RS), para o fim da rotulagem dos transgênicos no Brasil. Esse projeto sugere a alteração da Lei 11.105, de 24 março de 2005, na qual ficou estabelecida a identificação do símbolo “T” nas embalagens de produtos alimentícios e ingredientes, destinados ao consumo humano e animal. Basta ter presença superior a 1% de Organismos Geneticamente Modificados (OGM), ou derivados, para cumprir a obrigatoriedade do símbolo. Essa foi mais uma conquista da sociedade civil, fruto de ampla mobilização, assim como a inclusão do termo agrotóxico na lei 7.802, de 1989.
Curiosamente, como boa parte dos ultraprocessados são feitos a partir de monoculturas transgênicas de milho e soja, o símbolo amarelo com o um “t” em negrito começou a aparecer em uma diversidade de itens, revelando a padronização dos alimentos industrializados. O amido de milho, por exemplo, está presente no fermento químico e no granulado do brigadeiro. Um simples bolo caseiro de chocolate com cobertura pode ter dois ingredientes à base de transgênicos pelo uso do amido.
Em 28 de abril de 2015, o projeto foi aprovado pela câmara dos deputados e encaminhado ao Senado Federal, onde aguarda apreciação final. Ou seja, é necessário conectar a multidão em rede para impedir que ocorra esse retrocesso que viola do direito à informação, de conhecer o que realmente contém na embalagem. No site do Instituto de Defesa do Consumidor há uma campanha contra o fim da rotulagem para o cidadão enviar e-mail diretamente para os senadores, pedindo que o PL 4.148 seja rejeitado. Essa mobilização é necessária e urgente, num cenário onde tramitam projetos para ampliar a regulação dos agrotóxicos e transgênicos no país.
Nesse contexto de violação de direitos humanos fundamentais, como a comunicação e a alimentação, é importante assinalar que não haverá democracia no Brasil sem a democracia da mídia. Essa é a conclusão de diversos autores que pesquisam sobre comunicação, em especial, o psicólogo social Pedrinho A. Guareshi no livro O Direito Humano à Comunicação – pela democratização da mídia: “O avanço da democratização da comunicação é condição indispensável para o avanço da democracia em todas as instâncias da sociedade”. Citando o sociólogo Herbert de Souza, propomos refletir e agir sobre a onda de retrocessos que ameaça conquistas importantes da população brasileira no campo da segurança e soberania alimentar. “O termômetro que mede a democracia numa sociedade é o mesmo que mede a participação dos cidadãos na comunicação”. Vamos lutar para conhecer e comer alimentos bons, limpos e justos, como defende a associação Slow Food.
Por Juliana Dias e Mònica Chiffoleau