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Nossa Roda de Conversa foi muito produtiva ! (continuação do relato)

Com a palavra Beth Bessa: “vou falar do Centro de Atividades Comunitárias (CAC) porque, atualmente, é uma de minhas principais funções: trabalhar com o CAC, no CAC, para o CAC. 

O CAC é um espaço surpreendente e desconhecido por grande parte das pessoas da própria região da Baixada FluminenseFoi fundado em 1987 como uma associação de utilidade pública e filantrópica, com o propósito de subsidiar as discussões dos diversos setores dos movimentos sociais, desenvolvendo experiências concretas que pudessem apontar perspectivas para a melhoria da qualidade dos serviços públicos na região, principalmente, relativos à educação à saúde.

A escola do CAC foi fundada em 1989, oferecendo a educação infantil, desenvolvendo um trabalho construtivista com crianças de 4 a 6 anos, considerado muito importante pela comunidade. O CAC também desenvolve trabalho de educação ambiental e alimentação saudável, possui biblioteca que organiza rodas de leitura e faz empréstimo de livros.

Em parceria com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro – a UERJ – o CAC oferece curso de formação para professores da rede pública de São João de Meriti e Mesquita. Outra parceria do CAC é com a Rede Ecológica, iniciada no programa Campo e Cidade Dando as Mãos. Sua diretora, Adriana Camargo, que foi apresentada à Rede pela ong Amar (da França), buscou  ampliar as ações do CAC voltadas a promover o acesso à alimentação saudável das pessoas da baixada fluminense, e assim, em meados de 2016, foram formados  grupos de compras coletivas em  Mesquita e Belford Roxo.

Já a primeira oficina de cozinha aconteceu em 2017, tendo se formado a comissão de cozinha a partir da campanha de 2016, com a finalidade de complementar o curso de capacitação para a formação de novos grupos de compras coletivas, organizado pela Rede Ecológica em 2015. A oficina de cozinha foi uma experiência muito importante para estreitar a relação entre campo e cidade. Teve duração de 6 horas e articulou teoria e prática, segundo os princípios que a Rede segue dos 3 erres – Reduzir o consumo, Reaproveitar e Reciclar –, bem como as diretrizes do Guia de Educação Alimentar e da Campanha de Comida de Verdadeque é promovida pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional em luta pelo direito humano à alimentação saudável. 

Nessa oficina pudemos fazer várias reflexões, estabelecendo relações entre comida, saúde, sustentabilidade, regionalidade e sazonalidade com destaque para a compreensão de que resíduos não são lixo, e sim matéria prima para a compostagem.

No trabalho com as receitas, tentamos inverter a lógica habitualmente usada. Buscando o aproveitamento total dos alimentos e também das sobras, os preparos devem contar com o que se tem disponível na geladeira, na feira. Daí elabora-se a receita. É o trio bom, bonito e barato relacionado às receitas. Em diálogo com os participantes da oficina, vimos o que cada uma tinha trazido para a evento. Juntamos tudo e com esses alimentos se montou o cardápio. Havia disponível, principalmente, raízes como aipim, batata doce e inhame, que foram usados visando substituir a preferência pela batata inglesa e pela farinha de trigo nos preparos caseiros. Tivemos, assim, café com batata doce e aipim para no desjejum.

Também houve a intenção de mostrar os benefícios de se reduzir o consumo de carne – afinal, almoço não precisa de carne, precisa de proteína! Para essa refeição, preparamos um caldo bem nutritivo com as cascas dos alimentos e com ele cozinhamos o arroz, o feijão e o aipim para a torta. A salada foi de bredo, colhido no quintal, e outras plantas alimentícias não convencionais – os Pancs. Tivemos também uma torta salgada de carne de jaca com batata doce e chaya. De sobremesa, torta de banana com castanha e canela. Um sucesso nutricional !!

A seguir,  o vídeo dirigido por Ana Galizia, sobre esta oficina.

Ana Santos: Aiê, aiê, licença. Se o campo, as águas e a floresta plantam, todo mundo vai jantar. Salve a floresta do Camboatá! Serra da Misericórdia, última área verde da Leopoldina, uma serra que há 3 anos está sendo cuidada pelo Verdejar.

Eu estou falando do Complexo de Favelas da Penha, que não tem só 11 favelas, conforme registra o Instituto Pereira Passos. Lá tem também a Estradinha, a Favelinha e a Terra Prometida, local onde hoje é o CEM, fincando suas raízes para produzir comida de verdade.

Começo perguntando como a gente pode falar em direito se uma serra que é voltada para produção agrícola que é também cada dia mais uma pedreira que cresce com a explosão de pedras?

(Obs da redação: a multinacional francesa  Lafargue movimenta pedreiras na região há muitos anos)

É possível dizer que direitos são respeitados na favela? Como se pode falar em direito quando o governo fica de braços cruzados sem dar uma resposta à população quando, em meados de março, foi declarada a pandemia?  E é mais uma vez nosso movimento, nosso povo que vem na contramão do silêncio das autoridades.

Sou mulher preta, bisneta de Mariana, neta de Guaraciaba, filha de Rosangela, uma criança que já encontra com a cozinha num momento em que o umbigo não alcançava o fogão.  É a partir desse lugar de fala que eu vou tecer esta narrativa junto a vocês.

Boa noite. Eu me chamo Ana Santos.

Foi a partir da Rede Carioca de Agricultura Urbana que eu conheci a cozinha como trincheira de luta e a partir da Rede Ecológica que a gente começa a entender que o que a gente produz, tem valor. Foi em 2015, quando a gente começou a produzir proteína de jaca verde, que antes de ser comercizalizada, era nosso sustento dentro do CEM, e ela começa a virar fonte de geração de renda. A pandemia “gritou” muito. E ao mesmo tempo a gente ouvia muito a Bibia, falando da comida de verdade, deste resgate do qual a gente se lembra muito. Mas você imagina o que é na pandemia o surto de comida industrializada! Como é que é manter a comida no prato e o corpo nutrido? Como é falar de alimentação adequada, suficiente, em qualidade adequada, fresca, quando a gente precisa matar a fome? Quando a maioria dos empregos na favela é de empregada doméstica? São trabalhos terceirizados e as pessoas  no primeiro clic já entenderam o que estava acontecendo, quando o dinheiro começou a faltar. E aí é o grande desafio: você falar de cesta agroecológica num território de tanta fragilidade, você falar do resgate de pancs quando as crianças estão todas em casa e a necessidade de comer é muito grande! Porque elas estão em casa, precisam se alimentar mais. Não há mais o repasse da merenda escolar!

Foi numa conversa com a Miriam e muito incentivada pela Julia que a gente fez esta virada para a cesta básica e começa a trazer cesta de  comida de verdade. Conversei com o Coletivo Terra, com muito apoio de vocês, da Bemvindo, a gente começou a dialogar com a comunidade sobre o que é alimento vindo da agricultura familiar e mais: como é fortalecer nossos laços no território onde o motorista é meu amigo, o produtor é meu amigo, e onde divido o que ganho com quem está ao meu lado. Então vai muito além das cestas. A Bibi Falou que a gente não trabalha com a assistência . Eu no começo falava de assistência, mas vai muito além, quando você participa de um movimento agroecológico, você participa da agroecologia do estado e quando você tem a Rede Cau como prumo desta luta. E foi junto com a Rede Ecológica que a gente começou a ter esta narrativa junto aos moradores. Começamos a distribuição das cestas  e começou também o contato. Porque uma mulher que é empregada doméstica, a gente só vê de manhã e de noite, e de repente ela tem que ficar no seu território. E a gente deixa de ser cidade dormitório e passa a ser cidade ativa. A gente começa a olhar a serra da Misericórida e passa a perceber que moradores falam que a mesma batatinha que vai para dentro do prato vai para dentro da terra. Este movimento foi muito fortalecido pelo grupo de trabalho da Articulação de Agroecologia do Estado do Rio de Janeiro que começou a trabalhar a cesta do cuidado, do autocuidado. Como diz Silvia, a erva como alimento. Essas ricas trocas tanto da narrativa quanto de experiências, de saberes. Porque ela traz não o que o doutor está dizendo, mas ela resgata e valoriza  o que a minha avó sempre falou e eu deixei de ouvir. A cozinha como trincheira de luta, e como transformação social. A jaca ela foi para a oficina para fazer o hambúrguer, ela foi para o lanchinho, os matos de comer presentes o tempo todo. Seja na cesta, seja no próprio quintal que ela começa a olhar, a recordar. Porque a gente não está ensinando nada a ninguém É o resgate, é uma memória e como povo sempre soube disto. E é a partir dessa memória que a gente começa a fortalecer o diálogo. Porque chegou num momento em que tão importante quanto se alimentar era se comunicar. E o que é se comunicar? Se as próprias notícias presidenciais, as fake News, estavam dizendo que não estava acontecendo nada? O que é se comunicar  se a gente entende que se comunicar é encher a barriga? Então esta comunicação muito provocada pela Rede Ecológica  que aqui fortaleceu o coletivo de jovens em diversos territórios, e começa a se reencontrar e gerar notícias para dentro e para fora. Hoje a gente está ativando um espaço de cozinha, e esta oficina do CAC foi muito importante. A gente no CEM já estava movimentando isto, mas acabou perdendo a sede. E para quem faz agricultura urbana, o que é perder a sede? É perder o campo. Mas a gente, a partir do arranjo local, descobre que meu campo é em qualquer lugar. É no quintal, é no beco, é na rua. E este beco que se chama Escada do Aimoré está se transformando numa horta comunitária, num espaço de cuidado. E aí a gente começa a avançar. A gente sabe que a gente precisa se alimentar, precisa de alimentos de qualidade. O arroz e o feijão é muito importante. Qual é o nutriente que a gente mais precisa agora? É a taioba, ela virou a grande sensação. Eu ouvi choros, eu ouvi histórias, eu ouvi trocas de receitas. É este afeto que fortalece a soberania alimentar dentro da favela, ela também foi geração de renda. Há 15 dias a gente lançou o cozido agroecológico aqui dentro. Você acha que foi fácil? Quando é feijoada, é mais fácil, mas lançar um cozido orgânico, tem que dialogar sobre isto com muita gente que pegava uma batata doce e não sabia o que fazer. A partir das práticas culinárias que vão sendo trocadas aqui dentro, a gente começa a ter uma outra percepção do alimento. Enquanto o alimento e só um objeto, ele tem uma cor, uma forma, mas quando ele se transforma no nosso prato, ele ganha outro significado para dentro de nossas casas. E este outro significado, esta outra narrativa, esta outra potência do alimento é que a gente resiste, insiste em viver aqui dentro. Eles querem nos matar mas a gente decidiu que vai continuar vivos, produzindo alimentos, havendo estas trocas de cestas agroecológicas aqui dentro. Porque um projeto como Campo e Favela de mãos dadas ele nos une, não só enquanto instituições, mas enquanto pessoas. A gente está aqui dentro do mundinho da favela, mas a partir do Campo e favela de mãos dadas a gente consegue ir para fora, a gente consegue ganhar folego, se olhar e olhar de outra maneira. A Sandra, que é uma empregada doméstica, que hoje é uma das grandes lideranças aqui, ela virou para mim e falou: “Nossa, eu não sabia que tinha tanto valor dentro daquela casa!” E sabe porquê? Porque a mulher já nasce cuidando. Ela cuida da patroa, do filho da patroa, ela está cuidando sempre de todo o mundo. E ela teve um momento para se cuidar, para olhar a alimentação dela, dos filhos dela, para se cuidar. As grandes empresas, a guerra, sempre tiram de uma coisa ruim, uma oportunidade. Por que a gente não pode também fazer esta oportunidade?  E esta oportunidade foi de trocar afeto, de colocar a soberania alimentar como eixo central, foi de dizer que aqui existimos e resistimos. E aqui é a serra da Misericórdia! E falar de pancs, plantas alimentícias não convencionais também não é muito fácil, porque você entra em contato com uma memória que significa pobreza, fome e quando você ressignifica esta pobreza enquanto direito enquanto soberania, tudo muda aqui dentro. Eu gostaria de agradecer muita por esta participação. A gente nunca deixou de gerar renda por conta da Rede Ecológica. Eu sei que foi muito desafiante, mas a carne de jaca esteve presente, assim como as mudas dos quintais  e dizer que se não fosse o cutuca da Miriam, da Julia, a gente não conseguiria dar um salto tão alto, que foi diminuir a quantidade de alimentos e aumentar a quantidade de nutrientes. Muito obrigada a todas e todos. Seguimos juntas, como Renata Souto, do GT mulheres: no momento em que mais precisávamos dar as mãos numa política de genocídio, aí veio a pandemia, mas nossas mãos não podem estar descoladas. (Ana faz o gesto com as mãos unidas) Muito Obrigada!