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Novo caminho: Repasse com o Coração

Texto de Miriam Langenbach

Nos anos 90, ao redor da ECO 92, os 3 Rs surgiram na minha vida (reduzir o consumo, reaproveitar e reciclar), a partir do Tratado sobre o consumo elaborado pela ONU. Despertei para o reaproveitamento. Uma prática que comecei a ter desde então foi observar a rua e o que nela é descartado. É impressionante: objetos novinhos em folha, ou com um pequeno defeito fácil de consertar, antiguidades especiais, materiais de excelente qualidade. Tornei-me uma catadora, como a cineasta Agnes Varda mostra em seu belíssimo vídeo Os catadores e eu. É raro o dia em que não há algo interessante que surge das ruas. Minha casa foi decorada com estes objetos, utilitários, de arte, diversos. E ela é muito linda.

A chegada em minha casa de Luciana Ferraz me fez conhecer uma pessoa ainda mais atenta ao desperdício, e à possíveis reutilizações, desde o mínimo. Seu marido Orlando Serafim trabalha há muitos anos com transporte, em transportadoras. Nos últimos anos, perdeu um emprego de muitos anos, e a partir daí está se organizando como autônomo.

Adquiriu uma Fiorina, comprada a crédito com grande dificuldade, e trabalha com transporte de um maneiras sistemática junto a uma empresa.

O casal se preocupa em transportar doações para a região onde mora, onde há uma articulação em rede de pessoas que se ajudam em enfrentar as dificuldades, que a cada momento aparecem. São conhecidos na comunidade por esta postura solidária.

Fui percebendo que em muitos momentos as práticas de transporte destes objetos não é sustentável para Orlando. Movido pelo desejo de ajudar, ele acaba tendo que arcar com uma parte significativa dos gastos com o transporte, já que mora em Caxias (Nova Campina).

E aí fui fazendo as seguintes reflexões:

Quem doa algo, sente que não deve nada. Se sente fazendo uma boa ação. Quem quiser, pega. Ora, a questão é mais complexa: primeiramente, creio que quem adquire algo, que custou matéria prima ao planeta, em algum nível continua responsável para que este objeto não vire um objeto de reciclagem (ser fundido, por ex) ou apodreça nos aterros. Esta cadeia viciosa e maléfica deverá, sim, ser substituída pela cadeia virtuosa do reaproveitamento, o segundo dos 3 Rs, que é bem diferente da reciclagem (o terceiro dos 3 Rs). A reciclagem em muitas situações promove o descarte, que vai sendo cada vez mais implantado como mentalidade, dentro da lógica da obsolescência programada. A obsolescência programada tem a ver com a redução da vida útil dos objetos, num ritmo cada vez mais acelerado.

Infelizmente acaba acontecendo confusão entre os 2 conceitos, em que o reaproveitamento é confundido com a reciclagem, confusão promovida pelas corporações como forma de tentar dar um verniz educativo e positivo a reciclagem. Como exemplo significativo, na época da introdução da lata, esta não teria sido viável economicamente, sem que houvesse a adesão à reciclagem. Então a indústria se organizou para oferecer às escolas publicas uma campanha de coleta de latas, que virou uma febre. Ofereciam em troca computadores e ventiladores obsoletos. Nossa rede pública, muito carente, aderiu com entusiasmo, não percebendo a armadilha.

Prolongar a vida útil dos objetos é uma maneira significativa de colaborar com o meio ambiente. Envolve o conserto, promovendo artesãos que cada vez mais desaparecem, já que a mentalidade predominante está presa ao novo.

Uma cadeia virtuosa em confronto com o descarte supõe um repasse cuidadoso daquilo que não se quer mais para quem precisa e quer. E parte deste repasse acaba não acontecendo por causa dos gastos necessários com o transporte. É fundamental que pelo menos parcialmente quem doa arque com o ônus de fazer chegar o objeto àquele que dele precisa. E aquele que recebe também colabore financeiramente com um mínimo. Sei que isto bate de frente com a visão de mundo da maior parte dos que tem posses. Ora, já estou doando, estou fazendo muito. Será?

Este tipo de visão de mundo leva a solução mais imediatista e alienada possível, já que nega que vivemos em uma sociedade dividida em classes, em que as classes populares vivem uma diferença gritante nas suas condições de vida em relação a classe média e elite. Isto tem que estar muito claro para quem repassa, favorecendo uma redistribuição.

A consequência é entregar sempre as coisas para uma mesma pessoa, que possivelmente talvez faça um repasse mas onde isto não fica visível. Deixa-se de fora todas aquelas pessoas que estão precisando e que não tem condições de arcar com um frete. E a outra solução: colocar na rua, entregar à chuva, à destruição. Um catador não tem condições, a não ser reduzidas, de transportar o que ali encontra.

Em tempos de pandemia, em que tantas pessoas tem enorme dificuldade com a sobrevivência, há uma oportunidade de revermos esta questão.

Nós, da Rede Ecológica, acreditamos que se possa fazer diferente, com um repasse que de problema passa a solução e consequentemente muita alegria para todas e todos envolvidos Pode ser uma aula de educação ambiental, significando uma melhoria de nossa pegada ecológica. Mexer com este assunto não é fácil, muito menos quando envolve uma proposta concreta. Mas a meu ver, vale a pena. Dentro deste espirito criamos uma comissão que vai se organizar para fazer esta articulação. Já temos um casal, Luciana e Orlando, pessoas engajadas nesta prática, e que estão disponíveis para desenvolver esta proposta. Construir esta contribuição entre doadores, transporte e território para onde vai. Os territórios de nossa campanha podem ser focalizados, mais uma forma de apoiá-los. Eva Ferreira, nossa associada do Humaitá, já o fez :ao se mudar para novo apartamento, onde encontrou vários moveis, materiais, blindex, etc. Ela fez exatamente o que é nossa proposta: ela procurou o CEM, que ficou super sensibilizado, pois precisa de muita coisa, tanto para suas construções e iniciativas, quanto para os moradores. Eva colaborou com o transporte até o CEM, vendo que deixar isto totalmente com o território ficaria muito pesado financeiramente.

Muitas pessoas vivem situações de mudança, em que buscam um canal colaborativo. Minha proposta é que a Rede tenha um papel nesta intermediação, de modo a viabilizá-la, e em certas situações entre, para completar também financeiramente o necessário para a sustentabilidade do transporte. Estaremos trabalhando sobre uma mudança de mentalidade, um novo paradigma: não de descarte, de exclusão e indiferença e sim de convivência e compartilhamento.

A ideia é elaborar a partir desta comissão uma proposta viável levada a nossos cestantes, e a nossos amiga(o)s da Rede, que já são muitos. Com eles faremos a festa, porque acreditamos que muitos vão aderir!