Blog

Mulheres na Rede e continuando sua história de 20 anos

 

Texto de Miriam Langenbach

Tendo como mote “É possível pensar um feminismo latino-americano?” A partir dessa provocação, participantes da Rede Ecológica vão trazer a perspectiva de um “feminismo vindo de baixo e olhando pro Sul” em uma apresentação para as Universidade de California Santa Barbara e a Universidade de California San Diego. A apresentação será realizada em 28/5, às 20h . Serão 50 minutos de apresentação seguidas de 25 minutos para responder à perguntas

Coloque na agenda! O encontro vai acontecer via Zoom. Esta aberto a todos mas precisa se increver no link seguinte

https://tinyurl.com/5bhrfz4s

Aproveitamos para continuar a refletir sobre a história da Rede Ecológica

A Rede Ecológica se diferencia da sua precursora, a Coonatura, que acabou entrando numa lógica comercial, a partir e apesar de se organizar como associação. As compras coletivas de produtos agroecológicos feitas nos primeiros tempos, pioneiramente advindos de agricultores do Brejal, acabou cedendo lugar a uma prática de colocar os produtos numa loja – em certos tempos até duas – havendo um entreposto para estoque. Sem dúvida, tornou-se uma iniciativa que atendia a muita gente, chegando em uma época a contar com 2000 associados. Isto porque ela preenchia uma lacuna existente quanto à oferta desses produtos. Mas na década de 1990, muitas lojas de produtos naturais foram surgindo nos bairros e os consumidores migraram para outras opções.

 

O resultado dessa aposta levou à necessidade de fechar as portas, tendo que  enfrentar  dividas, depois de 20 anos de atuação. A Coonatura não conseguiu enfrentar as oscilações de mercado relacionadas a planos governamentais que foram acontecendo na época. Tudo isso a levou a uma crise de vários anos, até que seus trabalhos cessaram.

 

A Rede, desde sua criação até hoje, se define como um grupo de compras coletivas de alimentos agroecológicos, proposta que integra a economia solidária. Essa proposta se orienta por uma lógica distinta da descrita acima. A diferença está no modo de funcionamento em que o lucro não faz parte dos objetivos. As compras coletivas supõem, no caso da Rede Ecológica, a autogestão e um sistema de voluntariado na maioria de suas ações – e um voluntariado militante. As compras de alimentos de alta qualidade, sem veneno, rústicas, preferencialmente de alimentos locais e tradicionais são possíveis pela construção coletiva. E a contrapartida, da parte dos associados, é a contribuição voluntária. Uma postura que crescentemente tem sido aceita pelas pessoas como parte necessária de sua convivência na Rede.

 

Compramos produtos frescos e, uma vez ao mês, produtos que chamamos de secos, que incluem grãos os mais diversos, farinhas, produtos lácteos, sucos, produtos de limpeza etc.

 

O fato de essa compra de secos ser feita uma vez ao mês é um diferencial importante, pois permite que as pessoas organizem suas compras, com planejamento, o que estimula, em relação ao consumo, um outro tipo de comportamento,  mais consciente.

 

A compra de secos se iniciou em 2002 e foi se diversificando cada vez mais, o que tornou a ida ao supermercado desnecessária, a não ser para pouquíssimos itens.

 

Uma prática de consumo consciente, pautada na ideia do que é suficiente, e não do desperdício, do supérfluo, guiado pelo que está sendo oferecido nas gôndolas.

 

Mas este gesto não seria possível, se não tivéssemos na outra ponta nossas/os produtoras/es. Na escolha desses parceiros, privilegiamos os que estão mais vulneráveis às condições de seu entorno, e que são ao mesmo tempo os mais fortes e coerentes em relação à proposta. O MST, por exemplo, mais e mais se tornou parceiro de caminhada, que tem em comum com a Rede a luta pela agroecologia, pela popularização e acesso dos alimentos, pela reforma agrária. Criou-se uma relação de gratidão mútua, de fidelidade, de solidariedade.

 

Além deles, ao longo destes 20 anos de existência da Rede, acabamos tendo produtores dos mais diversos perfis, mas sempre dando preferência para agricultores familiares. Atualmente também estão entre nós produtores neorurais, que acabam contribuindo com produtos diferentes, mais difíceis de se conseguir. A consequência é uma grande riqueza e biodiversidade de abastecimento, com vários produtos que não se consegue nos espaços convencionais de compra.

 

O movimento solidário na Rede Ecológica se expressa da forma mais forte exatamente em relação a nossos produtores, pelos quais temos um carinho especial, por percebermos que são eles, fundamentalmente, que viabilizam esta nossa caminhada. Sem eles, nada disso teria sido possível. E nós, através da compra, vamos possibilitando sustentabilidade no campo, além de prestigio e empoderamento.

 

Deste modo, a cadeia produção-consumo, sob nossa direção, ganha novo status: de alienada – em que quem consome não tem ideia do que se passa com os que produzem – para consciente.

 

Saímos da dependência no acesso ao alimento e consequentemente dos supermercados. Um pequeno grande gesto que nos livra, em grande parte, do sistema capitalista em uma dimensão de nossa vida: o alimento como valor, a soberania alimentar como algo praticável, uma real parceria entre produtores e consumidores. É uma troca. Não queremos ter lucro. Nosso lucro é este formato tão enriquecedor!

 

Essa lógica de atuação faz com que não queiramos nos formalizar, não nos tornando uma cooperativa ou associação, apesar de sermos, desde o início, um coletivo. Ficamos assim mais próximas de outras organizações populares, sem termos de nos preocupar com as burocracias e os pesos da formalização. Isso, porém, não impede que nos movimentemos para que todas nossas entradas e gastos estejam organizados, inclusive enviando sistematicamente os relatórios financeiros por meio de nossa carta semanal. E quanto esse aspecto, ao longo dos anos, fomos nos equilibrando financeiramente, de modo a temos um fundo, decidido em comum acordo, proveniente de uma percentagem de 5% sobre a compra de cada um.

 

Em realidade, esse equilíbrio nos possibilitou começar a fazer empréstimos para fortalecer os meios de trabalho de nossos motoristas e produtores, o que foi para eles um poderoso auxílio.

 

Os produtores e motoristas atendidos puderam ver resolvidos seus problemas mais urgentes, sem ter que pagar juros e com formas de restituição feitas de um modo combinado e de acordo com suas possibilidades. Importante deixar claro que não temos inadimplências, um resultado maravilhoso de como a economia solidária é eficaz.

 

Isto nos fez ousar mais: assim, percebendo que um coletivo do MST tinha a necessidade de um veículo, e estava sem meios para adquiri-lo, foi organizada uma captação de recursos junto a associados e pessoas de fora da Rede, em formato de doação ou empréstimo, que viabilizou a compra.

 

Estamos operacionalizando uma nova proposta mais ousada ainda, típica da economia solidária: a de criação de um fundo de crédito solidário, que possibilite empréstimos maiores com devolução com juros de caderneta de poupança, com prazos a serem combinados.

 

Outro ponto importante é que não quisemos, desde o início, crescer além de algo ao redor de 200 a 250 famílias. A ideia é que nos espalhássemos por zonas da cidade, até o outro lado da baía – Niterói, e fôssemos para a baixada fluminense, buscando populações sem acesso a alimentos agroecológicos. Nossos grupos, chamados de núcleos, sempre foram e são grupos relativamente pequenos. Neles, e entre os núcleos, acontece uma interação solidária, outro ponto fundamental. Isto vai trazendo uma dimensão humana, de proximidade, de compartilhamento que torna a Rede amada por muitos. Ela fornece múltiplos alimentos, materiais e imateriais.   

 

Para que este movimento cresça como prática social, acreditamos que nossas propostas possam ser fonte de inspiração ou subsídio para outros.

 

Buscamos certa leveza no nosso funcionamento: assim, depois de transportados da feira da Glória, aproveitando-se de um espaço já existente para distribuição e posterior envio dos produtos para os núcleos, as entregas se realizam em espaços como escolas, inclusive dentro de uma feira agroecológica. São espaços solidariamente cedidos por algumas horas, aos sábados. Nessa feira há a disponibilização de uma barraca especifica.

 

Ao rompermos com a cadeia hegemônica de produção-consumo, estamos nos posicionando de um modo muito mais amplo, mostrando que na prática podemos viver de outro modo, concretizar um bem viver. Um bem viver que alcance as duas pontas: nós, consumidores, e produtore(s).

 

E last but not least: nosso nome Rede Ecológica não nega nossa preocupação com nosso planeta, com a natureza, e com a sobrevivência dos humanos nele.

 

Daí desde sempre uma preocupação com os 3 Rs, que parecem um detalhe, mas que são fundamentais: o primeiro r de redução de consumo, automaticamente vem com nossa forma de comprar. O reaproveitamento é algo que prezamos muito, tentando prolongar a vida útil dos objetos e nos colocando assim contra a obsolescência planejada, cada vez mais utilizada pelo sistema capitalista. O que fizemos neste sentido foi criar um caderno ecológico, feito a partir de reaproveitamento de folhas, capas etc., que tem um valor educativo simbólico. Organizarmos uma comissão que se volta para monitorar nossas embalagens, com o plástico sendo corajosamente combatido. Assim o saco plástico e o isopor estão banidos de nossas compras. E esta comissão está numa campanha rumo ao plástico zero, que ainda não se tornou realidade, mas está em processo. As embalagens de vidro são retornadas em um circuito virtuoso para serem reutilizadas pelos produtores.

 

Finalmente, também nesse sentido, uma comissão recém-criada com a finalidade de uma ação chamada de Repasse com o Coração busca fazer com que o processo normalmente feito como descarte de objetos que não são mais de interesse torne-se algo que possa ser carinhosa e cuidadosamente repassado aos que precisam, e vão fazer bom uso. É a solidariedade com nossos irmãos e irmãs e com o planeta.

 

Outra ação importante se resume na Campanha Campo e Favela de mãos dadas contra o corona e a fome, que surgiu a partir das demandas advindas da pandemia, que abordaremos na próxima carta.

 

E esta grande maioria de mulheres que somos na Rede Ecológica tem a ver com tudo isto? Como?