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Texto para reflexão

De Mariana Bruce

Foi difícil editar alguns trechos dessa análise maravilhosa do Carlos Walter Porto-Gonçalves e outros sobre o entendimento dessa pandemia a partir de uma perspectiva decolonial, tanto nos seus aspectos de surgimento, difusão e enfrentamentos, quando pelos porvires que se vislumbra a partir do caos distópico que nos metemos com esse mundo erguido pela matriz eurocentrica moderno-colonial.  Um deleite!  Enseja boas reflexões.
[…] Tudo indica que uma política de caráter liberal sem coordenação de autoridades, sem um caráter de interesse público, tenha pouca eficácia nesses casos, como indicam os primeiros dados revelados em março de 2021 após os impactos de medidas de proteção social do novo governo pós-Trump, empossado em janeiro de 2021. Consideremos que em países de grande extensão territorial a ação coordenada entre os diferentes entes político-administrativos (nacionais e subnacionais) se torna ainda mais necessária, como se viu pelo êxito no isolamento de Wuhan, na China, para proteger o resto do país, e como se vem observando a contrário no Brasil e se viu nos EEUU durante o governo Donald Trump. […] Como a história da humanidade move-se por contradições, outros horizontes de sentido para a vida vêm sendo engendrados em plena pandemia.  Várias iniciativas de caráter local vêm sendo registradas entre populações indígenas, camponesas, quilombolas e nas periferias urbanas, seja com barreiras sanitárias para se auto protegerem, seja para garantir alimentação em restaurantes populares, seja auto organizando creches para cuidar das crianças para que as mães possam ir ao trabalho. […] Nessas iniciativas há que se destacar o empenho e as iniciativas das mulheres que acumularam expertise de cuidado com a produção/reprodução e não só com a produção, ainda que essa expertise não deva ser atribuída a alguma condição natural na divisão sexual do trabalho, mas sim inscritas nas relações sociais e de poder em sua dimensão de gênero21 .  Haveremos de buscar aí nessas experiências horizontes de sentidos outros para a vida e para a política.

Destacamos, aqui, que essas outras racionalidades práticas indicam caminhos de outras relações com o que, na sociedade ocidental, se chama natureza, e cujo paradigma dominante fala de dominação da natureza como expressão maior do que entende por desenvolvimento.  É esse paradigma de “dominação da natureza” com o uso da “tecnociência”, ambas expressões cunhadas por Francis Bacon (1561-1626), que está em crise.

A pandemia do Coronavírus é, talvez, a expressão mais completa desse fundamento -“dominação da natureza” – imposto pelo patriarcalismo que subjaz a esse fundamento científico que informa a lógica do capital. O próprio Francis Bacon reivindicava uma “filosofia masculina” para efetuar a “dominação da natureza” que seria estendido a tudo e todos que à natureza fosse assimilado:  às mulheres, aos povos não-brancos “por natureza” inferiores, aos que trabalham com as mãos (proletários e camponeses) que deveriam se submeter aos que trabalham com a mente, com a cabeça (capita).  O conceito de natureza bem vale uma missa, parodiamos Karl Marx! (PORTO­GONÇALVES, 1989).  O que vem sendo gestado, a contrapelo, são outros horizontes de sentido com base no cuidado. Até aqui não temos uma ciência do cuidado, mas da dominação da natureza. Outras matrizes de racionalidade, como a dos chamados povos tradicionais, até aqui dominados pelo colonialismo em suas múltiplas escalas, nos mostram com suas territorialidades outras, outros horizontes de sentido para a vida. E não só no mundo não-urbano como se costuma crer. Afinal, é comum, nas periferias das cidades brasileiras, se fazer mutirão e, nas cidades do mundo andino, a minga. Ambas expressões -“mutirão” e “minga” -têm origem no mundo indígena: mutirão é uma palavra/uma prática de origem guarani e significa ajuda mútua; minga, é de origem quéchua-aymara, significa trabalho coletivo realizado para o bem comum e que conforma relações comunitárias de outro tipo. É como se as periferias dessas grandes cidades estivessem diante de uma colonização efetuada pelos de baixo, se é que a expressão colonização nos permite essa subversão de sentidos. Em suma, seja mutirão ou minga são práticas de trabalho em comum, práticas de ajuda mútua que (r)existem nas periferias das cidades latino-americanas e que sinalizam para os limites da colonialidade do saber que se impõe como obstáculo cognitivo . Muitas são as iniciativas que vêm sendo postas em prática nesses tempos de pandemia com base nessas tradições reinventadas tanto no mundo não-urbano como nas periferias urbanas das cidades latino-americanas.  Consideremo-las, pois.”

UMA GEOGRAFIA DECOLONIAL DA PANDEMIA, primeiras aproximacoes – Porto-Goncalves, Rocha e Trindade – Pandemia – Colapso Metabolico e Crise Sistemica II